segunda-feira, 24 de julho de 2017

“Queimem os livros!” bradam os pensamentos totalitários e autoritários.


Por Douglas Eralldo

Scherer nos propõe um exercício de visualização: “imagine 20 mil livros, entre eles grandes obras de Thomas Mann, Walter Benjamin, Bertold Brecht, Alfred Kerr, Sigmund Freud, Albert Einstein, Karl Marx e outros escritores importantes, todos alimentando uma grande fogueira em praça pública com 70 mil pessoas assistindo orgulhosas”. Ela faz esta “proposta” ao relembrar uma viagem a Berlin e ao ligar seu presente aos locais marcados pelo passado quando aproveita para recordar o ato ocorrido em 1933 que ficou conhecido como “a grande queima de livros” feita pelos nazistas com a chegada de Hitler ao poder. Não podemos negar que as imagens fortes e registradas pela história destas grandes piras feitas de livros marcam fortemente o romance Fahrenheit 451, de Ray Brabury, obra na qual o autor trata do tema através de seu protagonista Guy Montag, um bombeiro cuja atividade e função é a de queimar livros, pois no regime autoritário criado por Bradbury, os livros foram proibidos. Mas não podemos creditar a “preocupação” do autor tão somente as lembranças nazistas, pois há em seu contexto histórico uma forte perseguição à intelectualidade e à cultura em geral em pleno macarthismo, período complicado para a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Contudo, antes de olharmos mais para o romance de Bradbury, e também para as demais obras do conjunto de leituras sugeridas para este curso de extensão, é preciso antes, porém, observar que as “fogueiras com livros” não são exclusividades nazistas ou da ficção de Bradbury, e sucintamente recordando, infelizmente este é um ato que tem acompanhado e feito parte da barbárie humana. Um dos exemplos históricos que foi pincelado com tonalidades míticas foi a famosa destruição da Biblioteca de Alexandria cuja distinção entre mito e fato divide alguns historiadores, que entre a monumental queima e a degradação gradual por falta de investimentos reforçam a posição de Bradbury de que “há várias formas de se queimarem livros”. Se há algum consenso entre ideologias autoritárias e totalitárias, aliás, este é provavelmente o desejo de queimar livros, ou seja, o desejo de queimar o conhecimento “do outro”, revelando uma grande dificuldade de tolerância ao pensamento diferente ou divergente. Assim, em nosso percurso histórico “livros” foram queimados em diversas partes do globo terrestre, e por diversas culturas, fosse na Dinastia Chin, fosse por faraós, durante a inquisição católica, ou mais recentemente com uma diversidade de exemplos que vão das fogueiras do Estado Islâmico à ojeriza dos leitores de Trump com J. K. Rowling.

Em 1933 com a ascensão do nazismo fogueiras com livros se espalharam por toda a Alemanha

Por conseguinte não pensemos que esta seja uma prática distante do Brasil. Já observamos até aqui nossa formação histórica e social sob o jugo de ideais autoritários que marcam a identidade complexa do país com um passado que a despeito das aparências é marcado pela violência. Assim, por aqui, os livros também tiveram seus momentos de maior ou menor perseguição. Como lembra Reimão (2011) “no governo ditatorial de Getulio Vargas, conhecido como Estado Novo (1937-1945), livros foram apreendidos inúmeras vezes em livrarias, depósitos de editoras e até mesmo em bibliotecas, além de serem incinerados”. Conforme a autora “essas destruições eram frequentes e aconteciam arbitrariamente, à mando de qualquer pessoa que se julgava em posição de autoridade”. Durante este período autores como Raquel de Queirós, Jorge Amado, Monteiro Lobato e mesmo autores considerados moderados, como Gilberto Freire foram perseguidos ou presos, em geral denunciados como antinacionalistas ou comunistas. Gaspari (2002) lembrará também do ex-ministro da educação Flávio Suplicy de Lacerda que “que organizou pessoalmente o expurgo de bibliotecas, queimou livros de Eça de Queirós, Sartre, Graciliano Ramos, Guerra Junqueiro, Jorge Amado, Paulo freire, Darcy Ribeiro”; A ditadura militar, aliás – ainda que nem sempre lembrada por este aspecto – especialmente após o AI-5 em 1968 não poupou os livros de sua censura, e, ainda que com dados divergentes, durante a vigência do Ato Institucional que restringiu liberdades civis e políticas sabe-se de que mais de duas centenas de obras foram censuradas e outras quase cinco centenas foram “avaliadas” pelo regime, que diante da dificuldade de execução da fiscalização e repressão, conforme Reimão baseia seu estudo sobre a censura aos livros durante o período, aponta que a maior parte das obras analisadas pelo Serviço de Censura de Diversões Pública – SCDP ocorria por meio de denúncias de qualquer pessoa que se sentisse prejudicada por este ou por aquele livro, normalmente acusados do subjetivo crime de atentar “contra a moral e os bons costumes”. No caso da ditadura militar a censura foi institucionalizada e regulamentada pelo Decreto-Lei 1077/70.

No Brasil, durante o Estado Novo livros também foram queimados

Portanto, diante destas perspectivas históricas a abordagem da queima e da censura aos livros em obras como as pertencentes ao grupo sugerido para estas atividades é necessária. Deste modo, ainda que Fahrenheit 451 trate do tema de forma específica, as demais narrativas distópicas abordadas ao longo das discussões deste curso também retratarão o tratamento dado aos livros pelos regimes totalitários e autoritários. No Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley os livros também são proibidos e apenas as castas mais altas da hierarquia administrativa do Estado Mundial têm acesso a eles. Todavia, no romance, a literatura, aliás, será apresentada como elemento “libertador” na medida em que a oposição à utopia totalitária presente se dará através do Selvagem John e suas leituras de Shakespeare. Em 1984, de George Orwell os livros também são proibidos, mas vale lembrar que o regime do Grande Irmão não desconsidera o papel da “literatura de entretenimento” ao ter em seu Ministério da Verdade um departamento que dentre outras coisas era responsável por produzir “romances sem a menor qualidade, curtos e sensacionalistas” de modo a retroalimentar a alienação dos proletários, e aqui, certamente poderíamos abrir as portas para o pensamento sobre os compromissos e os objetivos do autor. No cenário apocalíptico de Não Verás País Nenhum, os livros e a intelligentsia também não tiveram vida fácil: “esquecem a tradição oral, proibiram os livros, cassaram os cientistas, expulsaram os professores, prenderam os pensadores” dirá Souza, dando exemplos de mecanismos presentes em modelos autoritários e totalitários. Vejamos então que se Fahrenheit 451 existe em função da queima de livros, as demais distopias do mesmo modo nos alertam para os sinais de tempos perigosos que podem representar quando nos deparamos com fogueiras feitas de narrativas. E já que falamos da obra de Ray Bradbury, uma olhada mesmo que rápida na obra é interessante para nossas reflexões.
Publicado em 1953, Fahrenheit 451 narra a história de Guy Montag, um agente estatal de um estado autoritário cuja função dos bombeiros é justamente a de “queimar livros”. Mas aqui podemos fazer um lembrete do próprio Ray Bradbury de que “existem muitas maneiras de se queimar um livro” de tal modo que o fogo se torna algo simbólico e não destituído de toda violência que pode emanar das chamas. Em sua jornada, Montag, de um bombeiro convicto passará a um pária do Estado, perseguido e criminoso pelo fato de render-se aos livros. Há em sua mudança dois fatores essenciais, o primeiro, o contato com a jovem [e revolucionária] Clarisse que acaba desaparecendo e em segundo, especialmente seu testemunhar de um incêndio em que a proprietária preferiu a perecer nas chamas do que abandonar seus livros. Incrédulo Montag dirá a sua esposa “você não estava lá. Você não viu. (...) deve haver alguma coisa nos livros, alguma coisa que não podemos imaginar...” Tais experiências é que levarão a Montag gradualmente ceder a sua resistência aos livros e romper com a doutrinação estatal e da corporação, de modo é que já dando mostras desse “titubeio” que se construirá o diálogo com o Capitão Beatty, momento quando como leitores seremos informados dos processos que levaram àquele Estado autoritário e intolerante aos livros:

(...) agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise nos amigos dos cães, nos amigos dos gatos, dos médicos, advogados, patrões etc. (...) quanto maior o seu mercado, menos você controla a controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. (...) cada editor estúpido que se considera fonte de toda literatura, lustra sua guilhotina e mira a nuca de qualquer autor que ouse falar mais alto que um sussurro (...) não houve nenhum decreto, nenhuma declaração, nenhuma censura como ponto de partida. Não! A tecnologia, a exploração das massas e a pressão das minorias realizaram a façanha. (Bradbury: 2014)

Aqui precisamos colocar alguns pontos de reflexão. Bradbury certamente alerta para o drama da censura aos livros, contudo, como podemos ver ele acaba colocando um bocado de peso sob as costas das minorias, negligenciando, porém, como já pudemos conferir em nosso processo histórico que as “maiorias” também muitas vezes atuam de forma censuradora e perversa, tendo elas, inclusive, um ferramental de maior poder e alcance que em muitos casos sequer precisa “queimar” livros, eliminando-os ainda no nascedouro. Todavia, como lembra Bradbury sempre há quem  “acha e que tem a vontade, o direito e o dever de esparramar a querosene e acender o pavio”, e independentemente se minoria ou maioria, encontraremos exemplos na literatura ou na vida real de ataques contra os livros, como no exemplo da matéria circulada na Revista Veja em 1976 tratando da censura de livros pelo Regime Militar e da forma como se dava o processo:

Alguém que tenha lido um livro, autoridade ou não, e o considere atentatório à moral ou mesmo subversivo, faz uma denúncia ao Ministério. Instala-se, então, um processo no qual é dada a um assessor do ministro da Justiça a tarefa de ler a publicação e emitir parecer. Com base neste, o ministro decreta ou não a apreensão. (Veja: 1976)

.  Feita esta comparação, e, contudo, mesmo que com pontos discutíveis, retomando a discussão proposta por Bradbury, tais exemplos são importantes porque o autor irá repetir ou retomar tais posições em artigos e posfácios da obra, e cujas opiniões debaterão justamente sua posição como autor:

Todos vocês, juízes, voltem para as arquibancadas. Árbitros, para os chuveiros. A Partida é minha. Eu arremesso, eu rebato, eu apanho. Eu corro as bases. No poente, ganhei ou perdi. No nascente saio novamente, fazendo a velha tentativa. (Bradbury: 2014)

À posição veemente de Bradbury podemos trazer para a reflexão o contraponto sobre a posição do “autor como produtor” trabalhada em uma conferência por Walter Benjamin, que principia o debate colocando em discussão a existência do poeta:

(...) a questão vos é mais ou menos familiar sob a forma da autonomia do autor: sua liberdade de escrever o que quiser. Em vossa opinião, a situação social contemporânea o força a decidir a favor de que causa colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à diversão, não reconhece essa alternativa. Vós lhe demonstrais que, sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos interesses de classe. O escritor progressista conhece essa alternativa. Sua decisão se dá no campo da luta de classes, na qual se coloca do lado do proletariado. É o fim da sua autonomia. (Benjamin: 1934)

A partir desta distinção Benjamin problematizará a questão do escritor progressista diante do obedecer a uma tendência e a observação de que “uma obra caracterizada pela tendência justa deve ter necessariamente todas as outras qualidades”. Em síntese, em sua conferência Benjamin buscará ir além da esterilidade dos debates entre exigir que o autor siga a tendência correta e a exigência de uma produção de boa qualidade. Em sua reflexão Benjamin lembra que “a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contra-revolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de convicções, e não na qualidade de produtor” de forma que “abastecer um aparelho um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo, na medida do possível, seria um procedimento altamente questionável mesmo que os materiais fornecidos tivessem uma aparência revolucionária” numa lembrança que deve-se ter o cuidado exatamente para não simplesmente extrair da situação política apenas novos efeitos para entreter o público, de modo que para ele o caráter modelar da produção que “em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção, e em segundo lugar, precisa colocar à disposição deles uma aparelho mais perfeito”. Ao fim de suas observações, o autor próximo de sua conclusão irá dizer que “só se imponham ao escritor uma exigência, que é a reflexão”.
Reflexão parece-nos de fato uma palavra (e escolha) bastante sentata e necessária, entretanto nem sempre em voga. Mas seguindo em frente e levando tais pressupostos em consideração e partindo dessa exigência de reflexão chegamos a este ponto trazendo para o debate o olhar de Antonio Candido ao falar sobre a literatura:

A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo a proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. (Candido: 2011)

A natureza dialética da literatura será um dos elementos que o autor utilizará em sua argumentação relacionando esta aos direitos humanos, instituindo “a literatura como um direito inalienável” dos seres humanos e “um bem incompressível”, ao qual não podemos estabelecer um valor monetário. Nesta argumentação, Candido ainda nos lembrará de que “é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita” de modo que depreendemos de uma afirmação desta a necessidade de afastamento de qualquer desejo de censura, seja ele qual for que seja. Ademais, isto posto, não custa lembrar o alerta de Robert Netz de que “a censura é o lugar de uma ilusão perigosa, exatamente aquela em que se fundam as ditaduras e as utopias”.
Assim, exposto este panorama breve, podemos principiar algumas reflexões acerca do instrumento de censura às obras literárias, funcionamento e procedimentos, além de questões transversais que passarão também pela posição do autor e suas escolhas como produtor, bem como a discussão de uma literatura como direito essencial ao ser humano, fato que ao concordarmos implica em oposição imediata a qualquer forma de censura e atenção a pessoas “com fósforos nas mãos e dispostas a acendê-los”. Todavia esta é uma discussão e um debate a ser feito sob as mais distintas e possíveis problematizações numa intrincada e complexa relação que envolve autores, leitores e suas respectivas esferas de poder, bastando que uma delas fraqueje (ou forceje deliberadamente) para que o corpo de bombeiros de Guy Montag torne-se possível.


Bibliografia
BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. 1934.
BOSI, Alfredo. Narrativa e Resistência.
BRADBURY, Fahrenheit 451, Globo de Bolso, Rio de Janeiro, 2014.
BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Não Verás País Nenhum: Global Editora, 2012.
CANDIDO, Antônio. O Direito à literatura in___ Vários Escritos: Ouro Sobre Azul. Rio de Janeiro, 2011.
GALILEU, Revista: in: A Biblioteca de Alexandria acabou por falta de verba, dizem historiadores. <link: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI343729-17770,00-BLIOTECA+DE+ALEXANDRIA+ACABOU+POR+FALTA+DE+VERBA+DIZEM+HISTORIADORES.html>
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo: Biblioteca Azul, 2016.
LITERÁRIAS, Listas Blog. 10 lamentáveis queimas de livros: < link: http://www.listasliterarias.com/2014/02/10-lamentaveis-queima-de-livros-na.html>
ORWELL, George, 1984 (13ª Impressão): Companhia das Letras. São Paulo, 2013
REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar: USP, São Paulo, 2011.

SCHERER, Fernanda. In: A grande queima de livros. Blog L&pm <link: http://www.lpm-blog.com.br/?p=21675>

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